SOLITUDE, Leandro Carnal

Mudou o tempo, o cérebro, o tipo de silêncio: sem ruídos , o barulho migrou para dentro.

Vivemos um tempo curioso – talvez até irônico. Nunca houve tantos alfabetizados. E, paradoxalmente, nunca presenciamos tanta dificuldade em sustentar uma leitura simples por alguns minutos. Este texto tem cerca de cinco mil toques. Parece pouco? Um pequeno ensaio – mas,  para alguns, já soa como uma Odisseia. Ulisses enfrentou monstros e naufrágios; o leitor moderno descobre notificações, abas abertas, mensagens pendentes e a tentação de rolar a tela. Ambos lutam contra distrações. A diferença é que Ulisses tinha um destino por vinte anos – e o leitor de hoje mal consegue terminar um parágrafo.

Não se trata de capacidade, mas de estrutura cognitiva. Sabemos decodificar letras; desaprendemos a permanecer nelas. Padre Vieira pregava por duas horas e arrebatava ouvintes. Hoje, reels e vídeos curtos exigem impacto em cinco segundos para prender a atenção. Mudou o tempo, mudou o cérebro. Mudou o tipo de silêncio. Hoje, mesmo sem ruídos, estamos cercados por estímulos. O barulho migrou para dentro.

Aqui está meu ponto: se quase todos perderam a capacidade de leitura profunda, quem a recuperar não ganha apenas conhecimento – obtém refúgio. Ler amplia ideias, organiza o pensamento, fortalece argumentos. Há um instante em que a leitura silencia tudo ao redor. E, nesse silêncio, algo raro acontece: a epifania, a iluminação.

Algo mais? A leitura pode deixar de ser exercício. Torna-se estado. É nesse ponto que ela revela seu dom mais alto: a solitude. Não o isolamento do mundo, mas a possibilidade de habitá-lo sem se dissolver. Um espaço interno onde o barulho não entra. Onde não se busca audiência, mas presença.

Quer começar? Os clássicos funcionam. O Mandarim, de Eça de Queiroz, discute ética de modo surpreendente. O Estrangeiro, de Camus, é um soco existencial. O Espelho, de Machado, mostra como a identidade se constrói entre o íntimo e o social. Todos curtos, diretos e brilhantes. Servem para “pegar no tranco” – como dizíamos sobre motores teimosos. Eça, Camus e Machado têm mais de um século de eficácia comprovada.

Faça um teste: anote agora o que você acha que torna alguém confiável ou um canalha. Depois leia O Que Nos Faz Bons ou Maus (Paul Bloom). Compare. Perceberá como seus argumentos evoluíram após o livro. É isso que a leitura faz: retira a cabeça do senso comum e a coloca em outro plano. A mente se torna mais afiada, menos apressada, mais capaz de pensar em camadas.

Gosta de diálogos de alto nível? Igualdade, com Thomas Piketty e Michael Sandel. Discutir afetos e percepções? Eu Só Existo no Olhar do Outro?, com Ana Suy e Christian Dunker. São textos com oralidade e densidade – um equilíbrio raro e saboroso. Ali, não há urgência por respostas rápidas. O tempo Kronos cede ao Kairós. Surge tempo de dúvida, e de escuta. E isso, hoje, é revolucionário.

Quer saber como ideias chegam até nós? Em O Primeiro Leitor, Luiz Schwarcz narra os bastidores do mundo editorial. Feiras internacionais, cafés da manhã estratégicos, disputas por autores. E então, um livro que lemos sozinhos à noite nasceu de reuniões com drinques e disputas. Leitura também é bastidor. Cada exemplar na estante esconde um enredo paralelo: de escolhas, negociações e coragem.

História? Em Utopia Autoritária Brasileira, Carlos Fico analisa o pensamento militar no nosso país. Mostra como a ideia de tutela sobre os civis moldou a República. Um livro essencial para entender a saga nacional – e perceber que certas ideias retornam com novos disfarces.

Conheci Enzo Fuji na Unicamp. Primeiro poeta, agora romancista. Em Perpetuando a Ilha de Jeju com Tangerinas, ele apresenta Hae-In, jovem coreano acima do peso que busca sentido em uma ilha. “Encontrar-se na vida é a grande vida. A vida pequena é viver estupidamente”, diz a personagem. Uma escrita sensível, poética e original. Concordo com Assis Brasil: nunca li nada igual. Enzo prova que há juventude pensando e criando com densidade.

Esses livros me acompanharam por meses. Dormiram ao meu lado, viajaram comigo, apareceram em palestras e conversas. Moldaram meu olhar. Sinto-me mais cheio de mundo por tê-los lido. A leitura não me isola. Ao contrário, transforma solidão em solitude – e me devolve melhor à realidade. Ler é como abrir uma janela por dentro.

Em tempos de excesso de estímulos, a leitura é o último refúgio sem propaganda, sem pop-ups, sem notificações. É o encontro com o que não grita, mas permanece. Enquanto o mundo oferece atalhos, a leitura traz profundidade. Quem lê escava, não desliza.

Num tempo em que tudo precisa ser imediato, ler exige um tipo de coragem tranquila. Um leitor é alguém que se permite demorar. E, por isso mesmo, carrega dentro de si algo muito raro: um mundo que não se apaga com o desligar da tela.

Hoje, ler é um ato revolucionário. O hábito produz uma forma rara e refinada de pensar. A leitura cria margem, pausa, distância crítica. Ouse ser especial. Ouse saber. Vinte minutos por dia – e um novo mundo começa a se abrir diante de você. A mente, que antes vagava, começa a habitar-se. E aí, começa a liberdade.

Fonte: O Estadão Coluna Opinião – 19/07/202, p. C12