O PAPEL É O NOVO LUXO, Nicolau da Rocha Cavalcanti

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A leitura no papel possibilita as condições para a atenção e o silêncio, duas das grandes carências dos tempos atuais

Passar um fim de semana na natureza – no campo, na montanha, na praia – nos desconecta de muitas coisas e nos permite acessar outras tantas. É encontrar um oásis no meio da vida atribulada: oxigena os pulmões, o cérebro, o coração. Em alguma medida, essa experiência vital também pode ocorrer com uma caminhada num parque público ou no Minhocão. O concreto pode ser muito humano, acolhedor.

Seja num fim de semana, seja numa manhã de sábado ou de domingo, a experiência de mudar de atividade e ambiente, desconectando por um período de tempo das preocupações habituais, é revigorante. Pois bem, este artigo vem afirmar que a leitura no papel – de um livro, de um jornal, de uma revista – tem semelhantes potencialidades.

Há uma ideia muito difundida de que, estando hoje tudo disponível nas telas – e sendo seu uso cada vez mais acessível e intenso –, o papel teria se tornado dispensável. O mundo contemporâneo não teria espaço para publicações impressas. As novas gerações já não teriam interesse na leitura em papel. Sem dúvida, a tecnologia oferece incríveis possibilidades, incríveis dinâmicas, incríveis facilidades. Não usar a tecnologia é colocar-se à margem. É estacionar no tempo. É excluir-se do progresso humano.

No entanto, não ler em papel significa também excluir-se, privar-se de um universo exclusivo, disponível apenas no papel. É colocar-se à margem de uma experiência única, profundamente humana. Além de menos agressivo aos olhos, o papel possibilita as condições para a atenção e o silêncio, duas das grandes carências dos tempos atuais.

Hoje, o problema não é a falta de informação. Nossas carências relacionam-se com a falta de atenção, com a dificuldade de reflexão, com conseguir parar e realmente entrar em contato com o que estamos lendo. Estamos perdendo a capacidade de olhar o que está diante dos nossos olhos. Em todas essas frentes, o papel tem um diferencial competitivo inigualável, permitindo-nos uma atenção qualificada. Não tem pop-ups. Não tem lixo ou ruído eletrônico. Não tem notificações.

Acostumamo-nos com elas, mas são muito prejudiciais. As notificações invadem um espaço íntimo. Às vezes, roubam o nosso tempo mais precioso, aquele período de descanso mais aguardado. A tela nos deixa vulneráveis aos invasores de nossa intimidade, aos assaltantes de nossa atenção. O papel é um mundo extremamente mais limpo, mais saudável. Sem atravessamentos, sem algoritmos manipuladores, sem solicitações indesejadas. O papel é um passeio na montanha. Ou um mergulho no mar.

O papel proporciona ainda outro grande benefício: o silêncio. Especialmente escasso nos dias de hoje, o silêncio é indispensável à nossa interioridade, à nossa capacidade reflexiva. Silêncio profundo no nosso interior. Só assim é possível contemplar o que estamos vendo. Só assim é possível entrar em diálogo, em genuína troca, com o que estamos lendo.

As telas não são silenciosas. Carentes de nossa atenção, os aparelhos eletrônicos produzem continuamente ruídos. Tocam alarmes, despertadores, vídeos. As telas violam o nosso mundo interior – justamente aquilo que deveria ser mais respeitado, protegido, valorizado.

O novo luxo não é o último modelo de smartphone nem o carro mais sofisticado. É o papel, ao nos oferecer o que é mais escasso e valioso nos dias atuais. Sim, ler um jornal impresso é um luxo. Ele assegura uma pausa no dia. Transporta-nos a uma dimensão completamente diferente da notícia. Oferece uma relação inteiramente diversa com os fatos e com a comunidade, num convite a refletir, a não ser meramente um consumidor de informação, a desenvolver a própria visão de mundo.

Meses atrás, um amigo – Tomás Biagi Carvalho, da Revista Amarello – voltou muito impressionado com o reflorescimento do mercado de revistas na Itália. Falava do cansaço do mundo europeu com as telas. E não é só lá. Começa a haver, também por aqui, uma rejeição a tantas luzes, a tantos ruídos. O digital não apenas ilumina. Ele confunde, irrita, empanturra.

O tema do papel é muito mais do que uma questão de gosto, uma espécie de hobby com canetas-tinteiro. A leitura no papel remete a um acesso. A uma possibilidade de cultura. A um caminho de humanidade, de reflexão, de diálogo. A um modo de estar no mundo, mais sereno, mais autônomo, mais protagonista. Não desprezemos o papel. Não o tratemos como etapa pretérita da história humana. Seu descarte tem um custo altíssimo.

Sem uma reação, o papel pode se tornar exclusividade de uma elite socioeconômica, aumentando ainda mais as desigualdades na sociedade. A depender de como as coisas se encaminham, só uma pequena parcela da população terá a possibilidade desta atenção plena, silenciosa, refletida, enquanto todo o restante estará obrigado a viver imerso num ambiente insalubre, rodeado de lixo eletrônico e ruídos digitais, refém da mercantilização da atenção e da interioridade.

O papel oferece uma experiência – uma atenção, um silêncio, uma plenitude – cada vez mais rara. E, justamente por isso, ele é estritamente necessário. Para todos.

 

Publicado no Jornal “O Estado de São Paulo” em 08/11/2023, p. A4.

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