ENSINAR?, Leandro Karnal
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A utilidade da escola está ficando burocrática e formal, cada vez menos orgânica.
Eu ensino. A frase é simples, mas todos entendem. Você, querida leitora e estimado leitor, já ensinou algo a alguém. Todos os seres humanos partilham da dupla experiência de ensinar e aprender. No entanto, o que significa “ensinar”? O termo deriva do baixo latim “insignare” e possui o sentido original de assinalar ou, de forma mais ampla, colocar um sinal. Aquele que aprende deve ser assinalado, ensinado. O sentido de “transmitir um conhecimento” foi desenhado a partir da Idade Moderna.
No mesmo momento em que o verbo ensinar adquiriu a forma sobre a qual entendemos agora, a transmissão de um saber, emergem palavras como formar e educar. Dar uma forma, conduzir, é algo que está na palavra latina “educere”, identificada na infeliz memória do título fascista Duce (o que conduz). Tivemos de aguardar a obra de Rousseau (Emílio) para que o verbo educar ganhasse a dimensão positiva atual.
O verbo que eu uso determina a concepção sobre alunos e o ato de aprender. A palavra instruir pode indicar fornecer equipamentos úteis. Em latim, “instrumentum” é uma ferramenta útil.
Quando se pensava a criança como uma folha de papel em branco ou alguém perfeitamente moldável, os objetivos e vocábulos educacionais eram muito diretos. Tratava-se de um processo de “adestramento” de um corpo/espírito. A escola deveria produzir saberes úteis e disciplinas que combatessem a preguiça, a desordem, ou seja, o “animal” que se escondia em cada um de nós. Educar era uniformizar. Um bom aluno era recatado, escrevia e pensava a partir de padrões estabelecidos. Alguém “educado” era alguém previsível, controlado, capaz de ser inserido em uma sociedade tradicional.
A grande crise da educação em casa e na escola é que não reconhecemos mais o processo de aprendizagem como um processo de se adaptar a um mundo. Não sabemos mais qual será este mundo. A velocidade das mudanças superou a capacidade de pensar educação, seja qual for a etimologia dada ao termo escola. Tudo o que importa parece estranho à sala de aula. Quase todos
nós, os adultos, viramos melancólicos repetidores do mantra “no meu tempo”, que serve mais para balizar meu passamento do que pensar um novo tipo de educação.
A utilidade da escola está ficando burocrática e formal, cada vez menos orgânica. Dizem: “Tenho de fazer o ensino fundamental e médio porque, sem eles, não terei acesso à universidade. Sem ela, não posso ter o diploma que garante meu universo produtivo e minha estabilidade”. Ademais, o diploma universitário está se tornando um título de nobreza: uma convenção social que produz a crença de que há pessoas melhores do que outras.
Se professores, pais e alunos não fizerem um debate honesto e rápido sobre o que é nossa compreensão de processo educacional, a escola vai perder por completo sua relevância. Três eixos podem ser assinalados como desafios a uma escola do século XXI: a) convivência produtiva com a diversidade humana; b) curiosidade científica e estética; c) senso crítico em relação ao mundo como se apresenta. Esses eixos podem ser desdobrados em dezenas de outros.
Olho nas mídias sociais reclamações de pais e de educadores. Alguns tocam em aspectos essenciais. Outros estão discutindo se a escola usa ou não linguagem neutra. Os neologismos podem ser usados para discutir linguística e dinamismo da fala. Deveriam ser tratados como o verbo “deletar”: sem paixão, com objetividade e, igualmente, sem adesão automática por “modismo”. Usei um exemplo menor para chamar atenção sobre como é fácil, em um mundo de ascensão de IA, ficar debatendo detalhes irrelevantes e deixando de discutir os eixos antes citados.
Um plano de ação? Uma educação a partir de problemas, usando imagens, integrando o lúdico e o metódico, valorizando a autonomia do pensamento e dizendo que o tempo de escola é um desafio a ser preenchido pela descoberta da arte, da linguagem e da ciência; de convívio com colegas diferentes e com capacidade de pensar ética, estética e criação.
Hoje, se eu tivesse de avaliar uma instituição de ensino, pensaria se as crianças e os jovens voltam dela com questões novas, debatendo no almoço familiar o que aprenderam, intrigados ou até espantados com os muitos mundos novos que descortinaram. Quase sempre, os alunos deixam a escola como apenados com um breve sursis, livres para viverem a vida real em regime semiaberto, mas voltando no dia seguinte até cumprirem o tempo obrigatório da sentença. Depois de viver com o que gosta, esse aluno voltará aos seus catetos e hipotenusas, às suas capitanias hereditárias, aos seus anacolutos e catacreses e à linguagem passivo-agressiva que domina as salas.
Amo escolas. Por isso, luto para que o sentido delas sobreviva. Tenho esperança de que nossa comunidade educativa desperte a tempo de transformar o sentido dos anos vividos ali. E você? Vê futuro para a sala de aula?
Publicado no Jornal “O Estado de São Paulo” em 28/07/2024, p. C8.