O ENCANTO DA IGNORÂNCIA, Mark Lilla
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Antes da leitura dos textos acontece a leitura de nós mesmos. O desejo do conhecimento envolve emoções.
Aristóteles ensinou que todos os seres humanos desejam o conhecimento. Nossa própria experiência nos ensina que todos os seres humanos também desejam não conhecer, às vezes vorazmente. Isso sempre foi verdadeiro, mas há certos períodos históricos em que negações de verdades parecem assumir uma vantagem, como se algum vírus psicológico se espalhasse de maneiras misteriosas, com o antídoto subitamente impotente. O atual período é um desses.
Cada vez mais gente rejeita atualmente a racionalidade, classificando-a como um empenho inútil que serve apenas para disfarçar maquinações do poder. Outras pessoas sentem, em vez disso, que têm um acesso especial à verdade que as exime de questionamentos, como uma protelação esboçada. Multidões em transe seguem profetas disparatados, rumores irracionais engendram atos de fanatismo, e pensamentos mágicos expulsam e substituem o senso comum e a experiência. E ainda por cima disso tudo profetas das elites pregam ignorância, pessoas escolarizadas que desprezam o conhecimento, idealizam “o povo” e o encorajam a resistir à dúvida e erguer muralhas em torno de suas crenças imutáveis.
Sempre é possível encontrar causas históricas imediatas dessas irrupções de irracionalidade: guerras, colapsos econômicos, mudanças sociais. Mas buscá-las pode desviar-nos do reconhecimento de que a fonte definitiva encontra-se num ponto mais profundo, dentro de nós mesmos e do próprio mundo.
O mundo é um lugar recalcitrante, e há coisas sobre o mundo que preferimos não reconhecer. Algumas são verdades inquietantes sobre nós mesmos; as coisas mais difíceis de aceitar. Outras são verdades sobre a realidade que nos cerca, que, uma vez reveladas, nos furtam crenças e sentimentos que de algum modo melhoram e facilitam nossas vidas — ou pelo menos dão a parecer que o fazem. A experiência do desencanto é tanto dolorosa quanto comum, e não surpreende que um verso de um poema inglês, que não fosse por isso acabaria esquecido, tornou-se um provérbio comum: a ignorância é uma bênção.
Qualquer um de nós é capaz de encontrar motivos para nós mesmos e outras pessoas evitarem conhecer certas coisas, e muitos desses motivos são perfeitamente racionais. Seria um despropósito uma trapezista prestes a subir na plataforma consultar a tábua de expectativa de vida para profissionais de sua área. Até mesmo a pergunta, “Você me ama?”, deveria passar por vários questionamentos mentais antes de ser pronunciada.
Mas todos nós também possuímos uma disposição básica de conhecer, uma maneira de levar nossas vidas no mundo conforme as experiências que aparecem no caminho. Algumas pessoas são apenas naturalmente curiosas sobre como as coisas chegaram a ser o que são. Gostam de enigmas, gostam de investigar, gostam de aprender por quês. Outras são indiferentes em relação ao conhecimento e não veem nenhuma vantagem particular em fazer perguntas que lhes parecem desnecessárias para simplesmente seguir a vida.
E há pessoas que, seja porque for, desenvolveram uma antipatia particular em relação à busca do conhecimento, cujas portas internas foram trancadas a sete chaves contra qualquer coisa que possa colocar em dúvida o que elas acreditam que já conhecem. Essas atitudes não se limitam aos pouco escolarizados; são estados de espírito que emergem em todos nós, por mais atípicos que possam parecer.
Por que isso ocorre? Porque procurar e obter conhecimento não é uma busca apenas cognitiva, é também uma experiência emocional. O desejo de conhecer é exatamente isso: um desejo. E sempre que nossos desejos são satisfeitos ou frustrados nossos sentimentos também estão envolvidos.
Dada a intensa rapidez com que tudo muda na vida hoje em dia, não é melhor nos fiarmos com frequência nas conquistas intelectuais e morais que já alcançamos? Por que buscar a verdade se a verdade exige de nós o árduo trabalho de repensar o que já conhecemos? Da mesma forma que somos capazes de desenvolver um amor pela verdade que nos incita ao interior, nós podemos também, portanto, desenvolver um ódio pela verdade que nos preenche com uma sensação apaixonada de propósito. É possível que haja um conflito de emoções, com o desejo de defender nossa ignorância levantando-se como um adversário poderoso ao desejo de escapar dela.
Uma fonte desse conflito é considerarmos nossas opiniões prolongamentos de nós mesmos, como próteses. Quando elas são atacadas ou descartadas, nós sentimos que algo íntimo foi atingido. E quando nossas opiniões provam-se erradas, sentimos vergonha. Sócrates sustentava que não é vergonhoso estar errado, que vergonhoso é fazer algo errado. Ele estava certo. Mas não é assim que nos sentimos inicialmente, em especial quando outra pessoa expõe nossos erros.
Todo argumento tem dono. Por trás de toda afirmação há um afirmador; e é ele, não seu argumento, que fere nosso orgulho. Por mais estranho que possa parecer, matemáticos e cientistas que debatem questões distantes de suas vidas podem ser tão dogmáticos e melindrosos quanto qualquer correligionário político. Uma nova partícula elementar é descoberta: será um salto gigantesco para a humanidade ou um ponto para o nosso time?
Em algum momento todos nós recusamos a oportunidade de descobrir o que é realmente verdade. Nós abrimos mão voluntariamente de conhecer a verdade sobre o mundo por temer que ela exponha verdades sobre nós mesmos, especialmente nossa falta de coragem para o autoescrutínio. Nós preferimos a ilusão da autossuficiência e aceitamos nossa ignorância por razões exclusivamente próprias. Não importa que confiar em opiniões falsas seja a pior forma de dependência. Não importa que a teimosia possa nos fazer prescindir da felicidade. Nós preferimos afundar com o navio do que cair no esquecimento.
Então, da mesma forma que discordamos das pessoas que se encantam com charlatões e demagogos, não devemos eximir a nós mesmos. Nós queremos conhecer — e queremos não conhecer. Nós aceitamos a verdade — e resistimos à verdade. A mente vai e vem, numa partida de badminton consigo mesma. Mas essa dinâmica não parece um esporte; em vez disso, nos dá a parecer que nossas vidas estão em jogo. E estão.
Mark Lilla* (The New York Times). Traduzido por Guilherme Russo. In: Jornal o Estadão. Domingo, 08/12/2024, p. A18.